2 de abr. de 2013

Crônicas dum personagem

N. 07

         Fabrizio tinha sido escalado para ficar de vigia naquela noite de fevereiro. O inverno, que aos poucos se esvaía, ainda causava dores nos magros meninos que restaram. Enquanto os rapazotes amuavam-se num canto menos exposto à solitária poesia gelada que caía com parcimônia sobre os escombros, Fabrizio ignorava o frio. Sua mente em luto nada conseguira concluir nos últimos cinco dias. Formavam-se e se destruíam em sua mente fragmentos por vezes cíclicos, por vezes obtusos de toda a sua curta história de vida.
                       Por um momento se esquecera que o amanhecer traria seu aniversário, mas assim que se lembrou, tornou a esquecer. Comemorações deviam tomar lugar quando também a alma está em disposição de festa. E na sua, nada havia além de silêncio, um silêncio cinza e covarde. Pela primeira vez. Era Fabrizio ali, o perfeito exemplo de humanidade. Enquanto ostentava a segurança necessária para o cargo a que tinha sido nominado, guardava dentro de si contradições. O desejo de chorar coabitava sua pele com a saudade da mãe. A dele era o tipo de personalidade que se permite fraqueza em intervalos decimais de segundo, quando há também presente e visível a certeza de um porto seguro. E lhe faltava a metáfora do útero.
         Parado, olhava a neve encobrir, por instantes, a morte que impregnava o vilarejo. Mas também a neve era placebo, pois a realidade que por debaixo esgueirava, sufocava o branco com o excesso inelavável dos excrementos metálicos vindo da guerra. Fabrizio, cansado de tanto verismo, deixou-se abraçar pelo gélido vento e quase que de vez. Mas lembrou-se do canto de sua mãe na fogueira e chorou, ou assim o quis. Talvez tivesse bastado a intenção da lágrima para ja umedecer-lhe o rosto, mas foi o bastante para o noviço guarda voltar de seu cochilo. E, de repente, de supetão, seus companheiros de magreza o puxaram para dentro do esconderijo. Enquanto o sono pausava os sentidos dele, um alarme de fora aguçava os ouvidos dos amuados pequeninos.

-'Ma che? Cosa fate, ragga' ?'- perguntou aos saltos quando acordou e se viu em pleno ar, carregado pelos amigos.

-'Sh! Fabri...Stai zito!' - disseram velozmente os comparsinhos querendo que ele calasse a boca.

         E com um talvez cômico gesto que surgira quase de instinto das mãozinhas do pequeno Romoletto, os olhos de Fabrizio foram direcionados pelos dois dedos em V de seu colega mais novo para o horizonte onde a vila começava. De longe, o grupo de melhores humanos havia voltado para uma nova missão de resgate. Por não terem feito o devido detalhamento de todas as - outrora - instituições, por assim dizer, do vilarejo, foram (aqueles que se sentiam levemente superiores) colocados em seus lugares de miséria e servidão com a missão de catalogar todos os restos do vilarejo e fazer uma reconstrução do que antes era reconhecido como a vida íntima do lugar. Em outras palavras, por haverem desobedecido seus superiores, tinham sido mandados numa missão de esquecimento ou Oblivionsmission, como poderíamos ter lido na mente de seus superiores caso estivéssemos lá no momento em que essa fora designada.
         E de caráter unânime, todos os olhos gritaram oportunidade. Da mesma maneira, as mãos ressecaram-se tamanha a avidez com que queriam ter aqueles três sob controle. Não importava que a guerra estava para acabar e que aqueles pobres coitados fossem talvez mais miseráveis que os sobreviventes do vilarejo pelo fato de serem medíocres desde a infância. Sua natureza era, por assim dizer, pétrea. Nada além de modificações biofisiológicas acontecia naqueles três corpos, já que a subjetividade do raciocínio nunca em suas mentes encontrara lugar.
         Tomados por uma cautela inigualável e por uma recém adquirida ética de caçadores, os rapazotes do lado oeste do vilarejo delinearam um plano quase maquiavélico de aproximação. Seriam antes de tudo divididos entre iscas - na pele de adoráveis vítimas órfãs -, e capturadores, cabendo aos mais velhos a pele de algozes impiedosos, rendendo enfim os gigantes culpados de suas desgraças afetivas.
         Enquanto chegavam andando, ainda que devidamente agasalhados, Karl, Utte e Fritz caminhavam entre deboches e reclamações de sua missão. Talvez igual em natureza, mas diferente em causa, carregavam ainda um sentimento de superioridade. Dessa vez, era por serem dotados de finesse estética que havia-lhes sido encumbida a tarefa de dar vida ao que seus chefes haviam tão orgulhosamente/desesperadamente destruído, ou mandado destruir como fazem os covardes com altas patentes. 
          Eis que no momento que pisaram a linha divisória entre a alto estrada de terra/lama e o vilarejo/cemitério, ouviram ao longe um agudo choro infantil despontar e concomitantemente, um pedido de socorro. Ah! Quão jocosa a natureza de nossas vaidades e querências. O plano havia dado certo. A vaidade pétrea do trio enternecera-se com a possibilidade de transformarem-se heróis nos olhos de outros além dos seus próprios.

Um comentário:

  1. Como vc escreve bem Mateuszinho querido!!!
    Muito legal. Parabéns!
    Um grande beijo saudoso e canoro na sua bochecha esquerda...
    ;)

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