29 de abr. de 2013

Crônicas dum personagem



N. 08

     Aproveitando-se de roupas rasgadas e já manchadas de múltiplos dejetos pós-bombardeio, os jovens lobinhos em pele de cordeiro se puseram quais indefesos filhotes que choram seu fim sob mira de espingarda. Ali, no centro do chão da praça, entre a finada escola e o bem mantido esconderijo, estavam sentados, um de costas para o outro, Romuletto e Andrea.
     Fritz, que encabeçava a trupe de ignorantes desajustados, caminhava passo a passo, esboçando um sorriso enquanto inventava um gesto com ambas as mãos na tentativa de trazer-lhes calma. Mas, talvez pela finura de seus lábios, talvez pelo acúmulo de paredões marrons e amarelados entre seus dentes debaixo, todo seu rosto inspirava mais asco que boa vontade. Se fizéssemos dele objeto de análise mais profunda, veríamos em seu rosto vários cortes minúsculos embaixo dos olhos e alguns rasgos maiores na testa, perto de onde os cabelos ensebados nasciam. O colarinho de sua camisa outrora branca parecia recém-lavado em estrume. Já os restos de trapos que o envolviam ousavam ainda sustentar o título de casaco. No lugar de botões, sua camisa e calça tinham pequenos pedaços de arame farpado, demonstrando seu conforto com o árido e inóspito. Aliás, toda sua roupa era uma ode ao desprezo. E seus olhos já há muito tinham aceitado tal condição. No entanto, ao ver os dois trapos de infância que ali (quase) jaziam, sentiu uma pequena explosão de redenção.
     Karl e Utte, que estavam exatos dois passos atrás de Fritz, por serem mais alto alguns centímetros que o esfarrapado companheiro, assistiram a cena de modo um tanto quanto diverso. Ele, o mais velho e ainda assim mais pateta da trupe, vestia uma velha casaca herdada de seu falecido pai. De tão pesada ela e de tão vazio aquele, sem perceber tornava-se cada dia mais corcunda. Em dias iria também ficar manco da perna esquerda, mas de tão danado que já era, basta dizer que debaixo da casaca cinza de feltro, tinha nada mais que uma surrada camiseta de algodão - tão furada que mais serviria de peneira que de pano de chão para nos compadecermos dele. E a calça, que também havia herdado – e aqui se acaba a lista de todos os bens materiais que possuía -, mantinha teimosamente, o vinco de fábrica e as barras feitas de modo singular por sua também finada mãe. Ele, Karl, de cabelos levemente castanhos e emaranhados e de cachos mal cuidados, tinha os olhos fundos e de cor pálida. Obedecendo a lógica de que nele tudo era ralo, seu sangue inclusive, de tão mal nutrido, nem mais anêmico conseguia ser. Talvez vivesse de pátria. É. Exatamente isso que lhe mantivera em pé durante toda sua jornada. Tinha em si magnânima admiração pela pátria. Era ela tamanha que antes de todo ato heroico, estufava o peito, fechava a mão direita colocando-a sobre o coração e, empinando o nariz para os céus, gritando: ‘Peeeeela Páaaaaatria!’.
     Utte, apesar de ser a mulher da trupe, tinha sua feminilidade bastante puída e mofada. Uma coisa era certa: era ela a que mais próxima chegava de uma pessoa sagaz e que muitas vezes deduzia os reais perigos das missões em que eram mandados. Havia se unido ao grupo mais tardiamente. Não lembrava bem há quanto tempo que os rapazes se conheciam. Mas não se importava também. Guardava para si o segredo de ter sido a melhora que faltava no destino de ambos. E eles, provavelmente, ainda que enciumados, dariam a razão a ela. Um tanto menos desgraçada que seus companheiros, Utte vestia coturnos marrom escuros, de solado ainda respeitável. Por esse motivo, seus pezinhos doíam menos. Vestia calça preta cujas bocas guardava dentro dos coturnos, como aprendera a fazer desde criança em tempos frios. Como Karl, também ostentava uma casaca. A sua, todavia, era preta. Utte a roubara de uma pobre coitada morta que havia encontrado em sua primeira missão de resgate de corpos. Fascinava-lhe a possibilidade de manter próximo de si um pedaço da vida de outrem. Era quase como se, julgando tal retalho de história alheia inexpressivo, dava-lhe a nova e hierarquicamente mais alta responsabilidade de manter seu corpo quente e salvo. Já seus cabelos, cinzas como pólvora, ficavam enrolados no pescoço, fazendo às vezes de cachecol. Apesar de possuí-los vastos e longos, por ser habituada a correr e andar sempre a pé, os cabelos de Utte se agrupariam como uma cobra viscosa ao redor de seu gordo pescoço, umedecidos pelo acúmulo de suor e neve. Os fartos seios ficavam apoiados por uma camiseta mais justa, de cor cinza, e por um pedaço de corda amarrada de improviso na base dos peitos, para garantir a estabilidade em momentos de perseguição.
     Fritz, portanto, estava agora parado frente aos meninos que habilmente cumpriam suas funções dramáticas. Por sobre o ombro direito do companheiro, Karl via parte do rosto de Romuletto e a perna direita de Andrea, aberta em diagonal para fora. Curioso para desvendar o que mais se juntava aquela perna arranhada e magra, Karl foi se desgrudando do trio e fazendo a volta até conseguir entender que era de mais um moleque que aquele amontoado de sofrimento se tratava. Mas nada na cena causara-lhe até então explosões morais.
Já Utte, tendo visto Romuletto de frente por completo, apareceu do lado esquerdo de Fritz e olhando para as mãos dele e depois para as suas próprias, tentou imitar o gesto enquanto pedia-lhes silêncio. Para ela, a cena cheirava a uma maternidade emergencial que nunca antes sentira.

-‘Shhh! Alles ist gut, jetzt!’ – sem saber que para os italianinhos aquilo nada dizia.

Foi, no entanto, pelo gesto das mãos que os meninos entenderam que eles poderiam ter calma. Agora tudo se ajeitaria. Ainda que por razões inversas àquelas pensadas por Fritz, Karl e Utte.

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