28 de mar. de 2013

Crônica dum personagem

N. 06



     Atentas ao crepitar do fogo, algumas meninas, as mais jovens, deixavam-se hipnotizar pela vivacidade da chama. Com o escuro da noite que chegava, era quase obscena a pressão que a pobre fogueira sofria para aquecer tantos rostinhos abandonados. Por não ser onisciente, o narrador errara ao dizer que a única família era a dos rapazotes.
     Dado que ao leste do vilarejo se concentravam as tradições femininas das famílias, nada mais prático suspender a razão prepotente e investigar pacientemente sobre os escombros da casa de vinhos e queijos. E lá, bem alimentadas e sonolentas, restavam cinco meninas e duas moças. Elas, avançadas em suas táticas de sobrevivência como é dado à praticidade das mulheres, ocupavam-se em trançarem seus cabelos e sair entre as primeiras bocejadas do sol para pegar lenha e talvez matar, com dó, algum bichinho que pudesse lhes dar um tanto mais de vida. Talvez pelo fato de que se deseja viver apesar de, elas seguiam uma magnitude anímica que as impulsionava para atividades de natureza tanto acalentadora quanto brutais. Talvez seja essa a semente que gera a maternidade. E todos os dias que seguiam as derradeiras semanas da guerra, ao acordarem e verem as menorzinhas - ainda encolhidinhas como coelhos assustados -, tinham a semente estimulada.
     Não haviam parado para conjecturar a sobrevivência de outros até que alto no céu das três horas, dançava o espírito roxo de uma pipa. Tinha lá sofrido algumas fraturas, mas ainda beijava a liberdade com uma ousadia ou outra acima dos galhos que restaram do bosque. Escolheram, porém a realidade dos poucos metros quadrados em que haviam esparramado sua existência e reino. A dureza da vizinhança morta já se esgueirava na compreensão das mais velhas moças, mesmo que se confortassem contra a gravidade da tristeza. Enquanto isso, retiravam fio a fio toda e qualquer possível lembrança de infância que tinham guardada nos cabelos para poder remendar os retalhos em que se encontrava a infância das pequeninas. Era já tanto esforço que se desdobrava de cada ato e pensamento das duas novas mães, que se por um lado a guerra as havia empurrado precipício abaixo, por outro, havia acordado nelas poetisas do vazio a céu aberto.
     O canto em que haviam se escondido e que heroicamente lhes havia salvado a pele, era parte de cimento batido e queimado, parte de areia e tinta branca e parte de vidro. Sem confessar, Silvia, a mais jovem das cinco meninas, consumia diariamente um segredo que guardara só para ele e para mim: abria, instintivamente, os seus olhinhos e deixava entrever um rasgo de esmeralda a sedentamente testemunhar o balé que os anjos de vidro faziam todas as manhãs. Ela havia já construído em sua cabeça toda uma narrativa que se concluía com o cumprimento dos anjos e o canto dos pássaros. Sim! Os pássaros lentamente voltavam de seus esconderijos para anunciar a calmaria. Fora por causa do primeiro canto de um pássaro desbravador que Silvia tinha agora esse segredo. Algo nele inspirava primavera novamente nela. Não a da natureza, que àquela altura ainda estava ensurdecida e ensimesmada, mas a primavera anímica.
     Amapola, a mais velha do grupo, habilmente havia desenvolvido com sua tia Giuseppina a maneira de como prender os cabelos com os galhos secos rejeitados pelas árvores do outono. Seu longo e anelado cabelo preto, agora um tanto embaraçado, resistia suntuoso quase como uma escultura diária erguida com os destros dedos longos da moça. As menores riam e por terem o cabelo sempre curto, como era de costume no vilarejo para a praticidade das mães, faziam piadas sobre a Amapola-cabeça-de-árvore. E ela, sorria feliz por conseguir os primeiros risos daquelas meninas. A primavera anímica espalhava-se lentamente e com seus ventos, aproximava os anjos de vidro e a pipa roxa. Em breve, a família aumentaria e o vilarejo renasceria.

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