Atentas ao crepitar do fogo, algumas
meninas, as mais jovens, deixavam-se hipnotizar pela vivacidade da chama. Com o
escuro da noite que chegava, era quase obscena a pressão que a pobre fogueira
sofria para aquecer tantos rostinhos abandonados. Por não ser onisciente, o
narrador errara ao dizer que a única família era a dos rapazotes.
Dado
que ao leste do vilarejo se concentravam as tradições femininas das famílias,
nada mais prático suspender a razão prepotente e investigar pacientemente sobre
os escombros da casa de vinhos e queijos. E lá, bem alimentadas e sonolentas,
restavam cinco meninas e duas moças. Elas, avançadas em suas táticas de
sobrevivência como é dado à praticidade das mulheres, ocupavam-se em trançarem
seus cabelos e sair entre as primeiras bocejadas do sol para pegar lenha e
talvez matar, com dó, algum bichinho que pudesse lhes dar um tanto mais de
vida. Talvez pelo fato de que se deseja viver apesar de, elas seguiam uma
magnitude anímica que as impulsionava para atividades de natureza tanto
acalentadora quanto brutais. Talvez seja essa a semente que gera a maternidade.
E todos os dias que seguiam as derradeiras semanas da guerra, ao acordarem e
verem as menorzinhas - ainda encolhidinhas como coelhos assustados -, tinham a
semente estimulada.
Não
haviam parado para conjecturar a sobrevivência de outros até que alto no céu
das três horas, dançava o espírito roxo de uma pipa. Tinha lá sofrido algumas
fraturas, mas ainda beijava a liberdade com uma ousadia ou outra acima dos
galhos que restaram do bosque. Escolheram, porém a realidade dos poucos metros
quadrados em que haviam esparramado sua existência e reino. A dureza da
vizinhança morta já se esgueirava na compreensão das mais velhas moças, mesmo
que se confortassem contra a gravidade da tristeza. Enquanto isso, retiravam
fio a fio toda e qualquer possível lembrança de infância que tinham guardada
nos cabelos para poder remendar os retalhos em que se encontrava a infância das
pequeninas. Era já tanto esforço que se desdobrava de cada ato e pensamento das
duas novas mães, que se por um lado a guerra as havia empurrado precipício
abaixo, por outro, havia acordado nelas poetisas do vazio a céu aberto.
O
canto em que haviam se escondido e que heroicamente lhes havia salvado a pele,
era parte de cimento batido e queimado, parte de areia e tinta branca e parte
de vidro. Sem confessar, Silvia, a mais jovem das cinco meninas, consumia
diariamente um segredo que guardara só para ele e para mim: abria,
instintivamente, os seus olhinhos e deixava entrever um rasgo de esmeralda a
sedentamente testemunhar o balé que os anjos de vidro faziam todas as manhãs. Ela
havia já construído em sua cabeça toda uma narrativa que se concluía com o
cumprimento dos anjos e o canto dos pássaros. Sim! Os pássaros lentamente
voltavam de seus esconderijos para anunciar a calmaria. Fora por causa do primeiro
canto de um pássaro desbravador que Silvia tinha agora esse segredo. Algo nele inspirava
primavera novamente nela. Não a da natureza, que àquela altura ainda estava
ensurdecida e ensimesmada, mas a primavera anímica.
Amapola,
a mais velha do grupo, habilmente havia desenvolvido com sua tia Giuseppina a
maneira de como prender os cabelos com os galhos secos rejeitados pelas árvores
do outono. Seu longo e anelado cabelo preto, agora um tanto embaraçado,
resistia suntuoso quase como uma escultura diária erguida com os destros dedos
longos da moça. As menores riam e por terem o cabelo sempre curto, como era de
costume no vilarejo para a praticidade das mães, faziam piadas sobre a
Amapola-cabeça-de-árvore. E ela, sorria feliz por conseguir os primeiros risos
daquelas meninas. A primavera anímica espalhava-se lentamente e com seus
ventos, aproximava os anjos de vidro e a pipa roxa. Em breve, a família
aumentaria e o vilarejo renasceria.
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