24 de mar. de 2013

Crônicas dum personagem

N.05

     Luchino chegara em casa da escola por volta dos trinta e seis minutos passados da uma hora da tarde. Havia se demorado pouco mais por resolver ajudar a sua professora a arrumar a bagunça que a turma havia feito durante a apresentação dos trabalhos finais. Era assim, desses pequeninos comprometidos com suas ideias e conceitos, independente de.

     Enquanto sua mãe retirava cautelosamente os inhames da água fervente, Luchino se demorou alguns minutos a mais para, enquanto cumprimentava a mãe através da sala, sentar-se no tamborete de madeira lascada e assim se descalçar com um tanto mais de conforto. Equilibrar-se num pé só enquanto se curvava para frente e trazia o joelho da perna suspensa para perto do seu peito não havia resultado no melhor dos métodos. Acredite! Ele havia tentado. Tinha os roxos na canela direita para provar.

      Para o observador atento, a janela da sala emoldurava com perfeição um ambiente simples, pequeno e bastante bem arrumado. Tanto o caráter físico quanto o estético daquele pequeno lar exalavam bom gosto e humildade. E sim, humildade mesmo. Não aquela humildade que se diz para esconder a vergonha de constatar a pobreza financeira daquele a quem nos referimos. Claro, o quesito econômico não os colocava na primeira das classes sociais, mas nunca nada faltara, tamanha a maestria materna em assuntos econômicos.

       Luchino, já de infância à mostra, enquanto jogava o tradicional jogo de adivinha com sua mãe, agachou-se e com a mão direita pegou seus tênises enquanto habilmente deslizava uma das alças da mochila jeans gasta por cima do ombro esquerdo. O tal jogo consistia numa brincadeira inventada pela mãe com a intenção de 'aguçar as ideias' do filho, dizia ela. Durante a preparação de todas as refeições, devia ele chegar na cozinha de olhos fechados e pelo cheiro e barulho, adivinhar o que e como a mãe estava a preparar. Ela, de tanto ser mãe daquele menino, entendia sempre ao olhá-lo que tinha algo que precisava ganhar espaço nele. Algo que o permitiria melhor entender o mundo. E por faltar a ela o vocabulário exato, acabava por tomar as decisões por outros vieses, mais silenciosos.

              Luchino arrastava as chinelas de borracha gastas enquanto saía do banho no mesmo instante em que sua mãe dizia estar pronto o almoço. A toalha que sambava entre sua cabeça e mãos cobria seus olhos enquanto enxugava os cabelos pretos. À medida que ela subia, diante de Luchino desvendava-se um litoral de prazeres. Sua mãe, como fazia ocasionalmente, havia preparado o almoço temático e tudo hoje brilhava à milho. Em dois pulos estava à mesa, com a toalha enrolada tal serpente no tamborete ao lado e transbordando de apetites. Enquanto se apraziam, as lições do último dia da escola eram retomadas em tom coloquial e entusiasmado. E de todos, a guerra transformou-se em origami reverso nos lábios do rapaz e ouvidos da mãe.

       As suspeitas maternas nunca d'antes haviam ganhado tanta prova de confirmação existencial. A capacidade afinada de questionamento e construção imagética do mundo e seus símbolos era demonstrada por Luchino com maestria. Chegada a noite, posto que o sol traria férias no amanhecer, dispôs-se a mãe ao diálogo de modo todo especial. E colheu cuidadosamente pergunta após pergunta e indagação sobre indagação acerca dos motivos de se fazer uma guerra, das razões e justificativas humanas para decidir pela destruição e qual a validade concreta de uma teoria totalitária para o reestruturamento de uma nação que se via em frangalhos. Os últimos botões colhidos pela orgulhosa mãe duvidavam da possibilidade existencial de uma democracia ideológica e conceitual sem o uso da coerção verbal e física, nessa ordem. Nunca d'antes testemunhava a mãe uma primavera tão rica.

      Luchino, ineditamente, fora deitar já quando o céu mudava de cor. Testemunhava simultaneamente uma epifania criativa e um quadro expressionista, emoldurado pela sua janela. Misturavam-se no teto de seu quarto a luz do sol e o brilho de sua primeira paixão, a história.

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