20 de mar. de 2013

Crônicas dum personagem

N.04

Ainda que não a tivesse em seu vocabulário juvenil, a palavra seria misericórdia. Aliás, Fabrizio, com o desenrolar daquela cinzenta semana havia se transmutado em nada além de vazio, confusão e misericórdia. Tamanha era a ausência no seu corpo fragilizado que o bambino chorava desespero no lugar de lágrimas.

Se num instante estava sob escombros, n'outro se achava no topo de um acidental observatório que se encontrava no que d'antes era a biblioteca do vilarejo. Mais tarde sua capacidade de superar tragédias pessoais diria que 'o conhecimento eleva a alma humana', já que foi pondo-se sobre livros que viu outros poucos sobreviventes se retirarem de distantes escombros por toda a vila.

Contar-nos-ia mais tarde que naquele momento deixara que suspeitar da possibilidade do divino. Se por ser mais inteligente que os outros, ou mais sensível e atento; ou se tais conclusões surgissem primordialmente de tais acontecimentos; ou ainda em última instância se a potência trágica de tais eventos fosse tamanha ao ponto de momentaneamente sequestrar toda e qualquer fagulha de fantasia - necessária à elaboração de qualquer mitologia -, Fabrizio ali, testemunhando os pedaços que outrora faziam seus anciãos, cheirando o odor de desespero que impregnava e engrossava o ar mais a poeira, a pólvora e o sangue, Fabrizio desiludiu-se e ao limpar o suor de sua testa e rosto, pareceu rasgar de seus olhos, com tal gesto, o véu da infância. Sua perspectiva tornou-se adulta e pragmática no instante que seguia seu piscar de olhos. Todo seu corpo e todos seus sentidos apontavam agora para um mundo que existia em sua própria e inapreensível lógica, no qual ocupávamos um lugar molecular e em constante movimento e mutação. O existir em si, ele nos diria anos mais tarde, ficou claro naquele instante estar desprovido de qualquer razão se não aquela que elaborávamos e sustentávamos para nós mesmos.

E no vilerajo, o céu restava vergonhoso de sua natureza inerte e caso soubéssemos ainda ler a natureza, veríamos que as nuvens se adensavam sobre a vila não como prelúdio de uma tempestade, mas como sutil manobra de esconder a humilhação trazida pelos aviões. Assim também se declararia as partidas árvores e o quase inexistente córrego que d'antes passeava imponente pelo meio do vilarejo.

I  bambini uniram-se no observatório e nada mais puderam fazer se não contribuir para adensar a gravidade que os puxava para a morte. Suas mortalhas outrora tingidas de descaso infantil, pesavam insuportavelmente sobre seus corpos violados pelo peso da orfandadeIrônico ria o destino caminhando pesadamente sobre as poças de sangue que pintavam os escombros. Quase como que brincando de pular amarelinha, ele assoviava ignorante enquanto largava sobre aquelas crianças o fardo da reconstrução. De tudo. De si mesmos, do vilarejo, de seu passado e da perspectiva de se tornarem alguém.

Arriscando um ato de liderança, Fabrizio levantou os braços e ajoelhou-se. Por ainda não ter seu coração dentro das fronteiras do limite, fechou os olhos e abraçou o chão em resgate. E numa mistura de risadas nervosas e soluços, todos caíram e se estenderam sobre o chão do vilarejo e choraram até cair no sono. Quase como se seus imaturos corpos inconscientemente soubessem que a terra natal continha o mínimo necessário de maternidade para salvá-los do vazio de sentido que aquele presente apresentava.

De madrugada, sentados perto da fogueira improvisada nos escombros da sala de música, as jovens mentes listavam quem haviam perdido e o que haviam encontrado durante a batida feita após o reencontro sob o observatório. A conclusão, de tão dura e inevitável, materializou-se de modo ditatorial. Na sala de música estava a única família que restara no vilarejo.

Um comentário:

  1. Mateus, essas cronicas sempre deixam um gostinho de "quero mais". Tem que transforma-las em estorias, em romances ou o que desejar chama-las.
    Bjao!

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