16 de mar. de 2013

Crônica dum personagem

N.03

Hoje descortina-se diante de vossos olhos leitores o remoto passado do vilarejo. Quase que construído por vontade própria da terra de aprimorar-se para a vida humana, as paisagens montanhosas se formaram enquanto o vento fazia música. Parecia consciente que assoviando para as nuvens, as belas brancas ririam em incontinência humorística as chuvas necessárias para regular a acidez de toda aquela terra vermelha.

Além disso, a terra apostava com as fronteiras de pedaços já populados que daria conta de nutrir mais que somente raízes. A terra dali tinha ambições afetivas para com os humanos. E assim não montanhas foram formadas, mas becos e riachos distribuíram-se a torto e a direita. Casualmente, a natureza arquitetou para dar como primeira impressão a quem a achasse o acaso. Também com um segundo intuito de fugir à explicação do desenho inteligente, a natureza ali simplesmente aconteceu.

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Do mesmo modo como certas pessoas movem-se pela raiva ou se retiram da inércia após fortes acontecimentos na vida pessoal, a menina de alva pele e rósea feição tinha suas pulsões internas a movê-la adiante. Porém, deixando-se pentear pelo calor úmido da primavera que se despedia, sentiu entrar-lhe nas solas dos pés o desejo de caminhar sem retorno. E despediu-se dos pais dizendo que tinha de viver. Nem o peso de lágrimas, nem o choro minaram de suas sandálias azuis a querência de amadurecer. Chamava-se Carmelita a pequena. E por sempre cantar candidamente, era apelidade de Voce d'Onore. Sua voz inspirava a sinceridade sentimental em todos da vizinhança e era responsável por inúmeras tréguas entre os povos dali. Talvez por querer ser responsável só por si é que ela nunca voltara atrás.

Enquanto a menina caminhava, a natureza que havia acontecido ao acaso assumiu a última acidez não lavada pelas chuvas e se pôs a testar a menina. E nada deixou crescer pela primeira semana. De sol a sol, a pequena Carmelita esticava sua paciência enquanto suas roupas percorriam o sentido contrário. Ela havia trazido nos bolsos algumas sementes sem bem lembrar de que eram. Enquanto percorria o terreno com seu olhar em busca de terra ainda não mexida, Carmelita maquinava as distâncias necessárias para construir os primeiros canteiros. Nesse ínterim, o ar denunciava chuvas e o cenário parecia favorável a seus ímpetos de fertilização. Curiosamente despercebido, eis que atrás de uma pequena colina sorria um salgueiro. Logo a dez passos dele, tudo era planície com moderado sol e suficiente umidade. Ali Carmelita ajoelhou-se e pôs a cavar, entupindo ainda mais de terra as suas unhas juvenis.

Cansada de sua própria jornada épica, vestiu-se de orgulho e indulgência. A sombra era seu primeiro trono e agora ela esperava a chuva para finalizar seu trabalho. Antes que pudesse sorrir, dormiu profundamente por uma semana. Talvez fosse menos tempo, talvez fosse sua consciência que, expandida por auto-satisfação, percebia a nova realidade com mais ousadia. O fato é que, e disso falo com onisciência, Carmelita acordou e percebeu ter plantado feminilidade. Do solo, cresceram duas outras moças tão impetuosas quanto a própria rainha. Se essa era alva, a pele das cultivadas majestades era cor de jambo e cor de azeite.

Palavra alguma foi necessária, já que pelo silêncio dos olhares elas se engravidaram. Dos punhos e lógica nasceram as primeiras casas e tetos. A fauna foi fabricada por outra ordem transversal que lhes fugia ao controle. Mas a flora parecia surgir de delicada alquimia anímica feita pelas três rainhas ao longo dos doze meses de gravidez. As moças brincavam de colecionar e cruzar plantas e flores à medida que seus sonhos brotavam noite após noite em seus leitos, ditando as sementes e as proporções.

Foram as únicas gravidezes que durariam um ano todo naquele vilarejo. Já que agora todo o cenário estaria pronto, a espera pela inauguração do lar não seria necessária. Fosse porque as mães eram tão necessitadas de condições ideias para existir, fosse por uma inata auto-indulgência dos pequeninos príncipes, as crianças sabiam que deveriam esperar o fim das atividades para nascerem em paz. E assim, completando o único ciclo de fantasia de toda a história desse pequeno povoado, as três rainhas deram luzes a casais gêmeos. Nascia o Vilarejo das Majestades e se iniciava a história dos Voce d'Onore.

Um comentário:

  1. Que lindo, amore! Quisera eu ter tempo de fazer um comentario mais longo. Pelo menos posso me deleitar lendo e vendo toda a descriçao da estoria. Bjao!

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