14 de mar. de 2013

Crônica dum personagem



N. 02
        Como tudo o mais que dali surgia, também as tardes de verão eram únicas no vilarejo. As temperaturas brincavam de extremos durante as estações e o dourado amanhecer já anunciava o vencedor sazonal. Mas por um instante, as atenções deslocavam-se para o casebre número seis da Rua Giuseppe Verdi. Não que algum fenômeno mágico estive a ocorrer junto com o nascer do sol, se não que a famiglia Voce d'Onore tinha naquelas bem-cuidadas paredes o seu próprio astro a despontar. Agora o vilarejo teria mais um bambino a correr pelas tardes e dar dor de cabeça e riso aos mais velhos. Surgia no primeiro dia de verão, Fabrizio Voce d'Onore. Bebê forte, de cabelos pretos e futuramente anelados, olhos marrons da cor do azeite e a pele já bronzeada. Nascera sem muitos problemas e dentro dos números esperados. Era apenas mais uma criança no mundo, não fosse pela imensa calma em seu olhar e sensibilidade em sua aura. ‘Guarda che bello ciccione abbiamo qui, Nono!’, gritava contente a avó janela afora fazendo assim saber não somente o avô, mas toda a vizinhança. Dado que o vilarejo era feito de proximidades, era não o sol e a chuva, mas o sentimento de familiaridade que fazia tudo prosperar.
     E segundos depois, por uma cumplicidade casual, o sol foi encoberto por duas pesadas e pretas nuvens. A avó gritava do quarto novamente, mas agora com sua figlia nos braços. Fora tamanho o esforço do parto que uma vida foi dada pela outra. E nada mais justo que o novato tomasse a frente na jornada. Com o grito da avó, veio o choro do recém-culpado e mais o lamento de todos os anciãos. E para manter a tradição, fez a natureza seu papel sombrio com as pretas nuvens a chorar raspas de carvão. O dia havia começado triunfante, porém de tão bem tratada pelos moradores, soube a paisagem recolher sua magnitude, deixando somente a memória da mortalidade como pano de fundo aos olhos enlutados da famiglia. Não que fosse permitida a autocomiseração ou o sofrimento prolongado. Somente que a dor da perda sentida em conjunto era ali naquelas terras mais intensa. Do temporal de carvão, restaram as paredes pintadas em pretas gotas. Até a chuva caía com mais pesar. Tudo estava conectado.
     Fabrizio nascera órfão de ambos os galhos da árvore. Seu pai havia viajado a trabalho e se perdido em alto-mar. Restou a avó, matrona de primeira marca, a continuar o legado de sua filha. O corpo podia extinguir-se; a memória, jamais. O senso histórico dos Voce d'Onore permeava toda a educação e convivência, tanto que eram conhecidos como os guardiões do passado. E criavam sua própria consciência, indo além da simples consulta de livros e páginas já escritas. Eram letrados e curiosos por excelência. E assim, sem questionar sua tarefa, Dona Anna beijou sua figlia na testa e em seguida tratou de amamentar seu neto com o mais sincero dos sorrisos nos seios.

-'Ma... Nona! Che fai? Lascia il píccolo Fabrizio con me! Va' a stare con la tua figlia!' - disse preocupado o neto mais velho de Dona Anna. Deixava ao irmão a incumbência de cuidar do pequeno. Uma mãe deveria se despedir de sua filha. Mas a sábia avó sussurrou que preferia amar a filha que existia no neto a abandoná-lo por um corpo.

-'La morte è il fine, Paolo! Ed io devo farlo continuare a vivere, sai?' - disse a avó, encerrando o assunto com muita simplicidade.

     Paolo permitiu-se chorar e ajudou a cremar a mãe. O terreno ali servia para fazer crescer, portanto eram os mortos entregues ao fogo e ao vento. Era uma manobra que pretendia anular o peso da morte, tornando a passagem o mais leve e orgânica possível. O vilarejo não possuía crença unânime e tampouco almejava uma identidade inequívoca sobre existências imateriais. Dado que a crença era mero conceito de auxílio a vida, que cada um tivesse o seu e para si o guardasse. Mas na medida em que a poesia pessoal de cada tinha seu momento de aparição pública, os corações na plateia permitiam se convencer por elas ou silenciosamente refutá-las por ação do pensamento. O ritual de cremação era, portanto, uma dessas poesias pessoais que com o passar dos anos havia virado tradição.
     Um mês havia se passado da chuva de carvão. O céu parecia nadar entre tons de laranja, dourado e púrpura por volta das seis horas da tarde e todo o vilarejo se reunira na praça central. Depois da jornada de trabalho e de estudos, todos se reuniam em volta da fogueira para ouvir as notícias do dia e as impressões daqueles mais inclinados a poesia sobre temas corriqueiros como vida, morte, amor e conflitos. Ainda que o encontro não fosse mandatório, parecia que a vontade de todos era de estar presente, caso o futuro seguinte à fogueira lhes tirasse o passe da carne, tornando-os domínios fronteiriços da memória, do passado e da lembrança.
     Enquanto Il Signore Ditto inventava mais uma de suas memórias românticas e fazia comentários nostálgicos sobre como eram bons os tempos de cavalheirismo, Fabrizio subitamente se colocou de pé no colo do avô Giuseppe e balbuciou algo parecido com Mamma. Todos primeiro riram e em seguida restaram imotos a olhar o destino final do pequeno dedo de Fabrizio. Entre as chamas da fogueira pairava, nos trajes noturnos em que morrera, a silhueta de sua mãe. A chorar.

(por Mateus Ciucci, no 12 de março de 2013, às 17:21)

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