14 de mar. de 2013

Crônica dum personagem



N.01
     Pelos céus nada além de aviões cinzas e empoeirados se podia ver. E deles, estranhas estrelas cadentes se desprendiam numa parábola ilusória. O céu de sonho tornou-se inferno e avermelhou-se na face enquanto abusado repetidamente pela ignorância aguda das asas e hélices. E as cadentes estrelas que pesavam rumo ao chão abriam espaço e apagavam pegadas.
     Tivera por perto um calendário e já teriam sido contadas duas semanas e meias de bombardeio. No primeiro dia, a comoção passou da pelada jogada pelos bambini no campo improvisado para aquelas coisas tão lindas que caíam feito presentes. Guardate che belli che sono!, diziam os pequenos com uma mãozinha na testa a se proteger do sol e outra na cintura enquanto os pezinhos descansavam, suados e marrons.
     Já no segundo, a única voz a soar sobre o improvisado era dos motores. E não apenas os pés descansavam. Entre restos de bolas, botões e bambini silenciosos, se olhássemos mais de longe, veríamos toda a infância a dormir. Eternamente.
     O terceiro dia era um jogo de esconde-esconde. Os desconhecidos lá de cima contavam até três e começavam a caçar. Não que fosse uma brincadeira lá muito justa, mas mesmo assim todos brincavam. Quase como se não houvesse outra saída.
     O restante do time de casa, os que haviam sobrado, haviam chegado ao quarto dia e cortavam seus pontos positivos na parede do porão da escola. O que havia restado da escola, claro. O quinto dia acabou sendo enganosamente espetacular. Porque primeiro veio a graça de acordarem juntos. Em seguida, nunca um pedaço de salame alimentara tantas esperanças. E junto com o calorzinho gostoso da manhã do vilarejo, veio o silêncio. Era um banquete de controvérsias: crianças calavam-se de alegria; ruínas e escombros nunca dantes tinham despertado tanto prazer estético. A única face da realidade que se alinhava com a imaginação dos bambini era a ausência. Estavam sós. Forse loro stanno a giocare nell'otra squadra, più lontano da noi  - Talvez eles estejam n'outro time que tá jogando mais pra lá!
     Sobreviveram imaginando, talvez por força de hábito da idade ou por uma maturidade recém adquirida que elegia a fantasia como estratégia primordial. Os acontecimentos do sexto e sétimo dia sobrepuseram-se entre mais estrelas de ferro que cortavam o ar em apitos agudíssimos e menos identidade a ser reconhecida entre os moleculares fundamentos de outrora pilares do vilarejo.
     O grupo de dias que seguiu, pareceu se abuletar na cidade sem um fio de criatividade. A palavra de ordem era destruir e assim, cirúrgicas repetições em pontos estratégicos aconteceram. Ao final da segunda semana, portanto, havia apenas acúmulos. Acúmulos e ausência. Quanto maior restos e moradores a dormir, menor a humanidade do vilarejo.
     A intensidade e ignorância do abraço aéreo refletia o desespero pelo anúncio trazido com os momentos finais. A ideologia de pureza não havia bastado para fazer tão grande nação mutar-se águia e sol. E o desespero de achar-se superior foi transformado em agonia de saber-se mortal e sozinho.
     Havia sempre uma varredura final a ser feita por um grupo de pobre-coitados que sentiam-se ligeiramente mais sensíveis por receber tal incumbência. Tal responsabilidade acabava por colocá-los acima da gentalha que os empregava, assim pensavam. E talvez, por um fino receio da efetiva existência do juízo divino, esse grupo havia sido criado justamente como subtexto humanista nas ensopadas vermelhas páginas do caderno de estratégias da guerra. Fosse por ironia, fosse por destino ou talvez acaso, por terem entrado na discussão da metafísica de seus atos, os varredores deixaram passar uma constante batida abafada pelos escombros da biblioteca. Declarado o sucesso da missão-desespero pelos varredores, a cidade foi deixada a seu próprio velório. E entre as cinzas de Utopia e do Purgatório, a batida constante respirou aliviada.  Com uma das mãos protegera os olhos. Com a outra, retirava o peso de cima de sua cintura. De pé, seus olhos tinham uma direção e pareciam dizer somente uma palavra.

(por Mateus Ciucci - 08 de março de 2013)

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