12 de jan. de 2012

...Sabores...

Ainda sabemos saborear a Arte?

E se tivéssemos de dizer o gosto de uma peça de teatro? Ou assumir, a contragosto, a adstringência de um Egon Schille? Ainda seríamos capazes?

Mas há como saborear Arte? Sabor não é só de comida?

Leiam as seguintes citas antes de continuarmos:

‘Paladar é o sentido ligado à boca: certas regiões da língua e do palato distinguem grosseiramente o sabor, e o olfato contribui com os detalhes. Por isso é que você não sente direito o sabor das coisas quando está resfriado’

(HIRSCH, p. 63, 1999).

‘Gosto é algo mais abrangente, subjetivo, condicionado por moda, cultura, propaganda. Pode até não depender do paladar – não tem aquele papo de que uísque, se vendesse em farmácia, ninguém bebia? E cerveja, que para nós só pode ser gelada enquanto na Inglaterra é boa quente? Gostar é muito pessoal. Gosto não se discute, e muito menos mau gosto’

(HIRSCH, p. 63, 1999)

‘Já o sabor é uma espécie de código do alimento – algo que marca aquela forma para sempre e tem o poder de atrair ou repugnar. Textura, consistência e aparência geralmente ficam em segundo plano; sentindo o sabor já sabemos do que se trata. Sabia (...) que as palavras sabor e saber têm a mesma origem latina, sapere? Pois é, e mesmo em português se pode dizer, machadianamente, que o creme de cebolas sabe muito bem ou que o chá sabe a jasmim. Assim, saborear ganha o sentido de explorar, conhecer e saber o sabor, entregar-se completamente à fruição do paladar’

(HIRSCH, p. 63, 1999)

Agora que temos um entendimento mais consonante sobre o que pretendo com tais palavras – paladar, gosto e sabor – podemos dar continuidade. Busco construir uma melhor sedimentada compreensão do que é arte e de como nos relacionamos com ela.

Já se perguntaram o motivo de irmos ao teatro? A razão de comprarmos um livro de poesias? De irmos a um Museu? De sentarmos numa mesa no clube do choro? Também parte de nossas ações estão, claro, influenciadas pela cultura, pela propaganda, pelas normas sociais. Mas fazemos tudo no automático?

Voltemos para a comida. Comemos para nos manter vivos, em primeira instância. A tal fome nos mantém na linha, mas será só isso? Nossa espécie se gaba do fato de termos consciência.

Usêmo-la, portanto. A fome, ao menos para mim, não se restringe ao estômago. Acho que o fato de a religião ter mantido seu lugar nas paradas de sucesso espiritual nos pode dizer algo sobre isso. O que se chama de alma traduz muito de nossa relativa superioridade racional como espécie. Nossa fome é também imaterial, inominável muitas vezes e irrefreável. E por mais belo que seja o risoto de peras com gorgonzola, algo ainda pede por cuidados em nós.

A arte como esse outro lugar de alimentação. Melhor dizendo, a produção artística como mercado de suplementos anímicos. Já que estamos assim tão imersos e reféns da Indústria Cultural, apropriemo-nos de sua lógica! Foram alguns muitos de nossa própria espécie que a criaram, certo? Ou ganhou ela tamanho peso que se fez sozinha entidade do século XXI?

O consumo dos produtos artísticos carrega em si, ainda, a potência de serem saboreados por nós, explorados em toda sua estrutura nutritiva e digeridos. Na aldeia global em que vivemos torna-se recorrente a presença de repetidos, diminuindo o que conhecemos por variedade. E variedade é indiscutível na hora de montar nossa lista de compras do mês. Mas ainda sim outros tantos de nossa espécie inventaram recursos que, bem ou mal, tentam uma rota de fuga a essa mesmice. E assim, de grão em grão enchemos o bico.

À variedade se une o tempo para o consumo. Já que, até certo ponto para nosso privilégio, não precisamos preparar uma sinfonia de uma hora ou uma peça de cinco atos antes de saboreá-la. Outros, como quem vos digita, assumiram o (b)ônus por vocês. Então ir ao teatro ou museu ou adquirir um livro de poesias pede pouco de nós. Antes de tudo, disponibilidade. Depois disso, pede os sentidos para que vocês se alimentem. Do mesmo jeito que comprar o melão não te garante uma bela salada de frutas, comprar o ingresso da peça não te garante a absorção de todos seus nutrientes. O paladar para o alimento arte se multiplica por cinco. As nuances de tais produtos nos podem mover de incontáveis modos e nós, como bons seres de reação, expressamos à nossa maneira, cientes ou não, o retorno daquele encontro ou relação. A ausência, aparente, de reação é senão uma reação. De incompletude. De abismo. Da negação. Mas está lá. E para isso, nós também precisamos do outro lado estar lá.

E aprendendo a saborear, aprenderemos a escolher. Podemos não saber a causa da reação de início, mas o Gourmet é antes um experiente saboreador. Se o sabor é o código do alimento, transfiguremos o alimento matéria para o alimento arte e teremos a prática de fecundar os bosques e hortas subjetivas, aprendendo a selecionar os frutos a que podemos nos entregar e aqueles que nos repelem. Será que estamos tão alinhados assim que nenhuma opinião controversa existe? Ou ela se faz tão tímida e fraca que achamos não valer a pena contra-argumentar a maioria? O debate é também um belo exercício. Sabemos sim defender aquilo que nos é caro. Imagino que delírio seria o contraste de vozes durante o intervalo entre atos quando um defende a esperteza de Beatriz e a outra defende a perspicácia de Benedito em sua bela e elegante batalha pelo afeto mascarado independência emocional? Quão mais nutritivo seria o valor de um Samuel Beckett ou mesmo de um Tchekhov ou ainda quão mais desnudante seria Nelson Rodrigues para nossa moral?

Nossos caminhos de vida em meios urbanos tornam-se tão atribulados e objetificados, óbvios e simplificados que não mais temos tempo ou sabemos como achar o fio de Ariadna para nos salvarmos.

Dilatar o tempo para uma alimentação subjetiva hoje parece luxo supérfluo para aqueles cujas preocupações diárias se acumulam e ocupam em nós o lugar da serenidade e da autoconsciência. Mas, por mais que queiramos nos dedicar inteiramente a elas já que, segundo dizem, é isso que põe o pão na mesa, esquecemos que não só de pão se desenvolve a criatividade, a saúde anímica, a imaginação, etc., além de outras tantas porcentagens que nos faz mais pessoas e menos partes.

Grande beijo e nos lemos em dez dias!

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